30 de mai. de 2010

A Espiã














Conheço o som do medo e o cheiro da morte se aproximando
devastadora e fria.


O carro que nos seguia a distância está cada vez mais perto,
estou sentada no banco de trás e ao meu lado meus dois irmãos
olham incrédulos para o que está prestes a acontecer, no volante
meu pai tenta manter a mesma velocidade. Minha mãe nada fala.
Não vê o carro se aproximando. O carro que nos seguia acelerou
absurdamente e o choque inevitável aconteceu.

Primeiro o som abafado e alto, tontura e dor, tudo se moveu
muito rápido, estilhaços de vidro, sangue, gritos e a sensação
de abandono e solidão novamente tomou conta de mim.

O silêncio durou pouco tempo, logo percebi que o pior ainda
estava para acontecer, com o choque nosso carro foi jogado
para o meio da rodovia, como eu estava na janela abri a porta
e saí do carro me arrastando, o corpo coberto de sangue
escorria pela testa manchando meu vestido branco de domingo.
Consegui chegar á beira da rodovia, senti uma tontura, tudo
rodando a minha volta.

Escuridão.

*
Faço quatro vezes por dia o mesmo caminho para ir ao
trabalho “um” que é apenas um disfarce para meu trabalho
“dois”. Vivo sozinha num pequeno apartamento, meus
companheiros são os livros e a música.

Mesmo antes do acidente em que perdi meus pais e irmãos
já trabalhava como informante para a polícia secreta.
Não achei que seria um grande risco até o dia do acidente.
Para manter os meus chefes informados tive que me
aproximar de um homem que é o chefe da organização
criminosa que estamos investigando.

O que eu não esperava era que ele se aproximasse de
mim por vontade própria.

Numa manhã de Dezembro sigo a pé em direção ao
trabalho quando ele passa por mim de carro depois
do almoço e na volta para casa. Ele passa por mim
e apenas olha. Um dia ele parou o carro branco
impedindo minha passagem.  Entregou-me um cd e disse:

-Eu estava a sua espera a minha vida inteira.
Entrou no carro e foi embora.

Fiquei surpresa e desconfiada.
Fui para casa ouvir o que ele gravou no CD, eram músicas
lindas, lindas e tristes, palavras que ele pensou em me dizer
e que estavam ali nas letras das músicas.

Os meses estão passando e ele continua a me seguir de longe.
Eu sinto quando ele está para chegar e o pior:
Eu sinto falta quando ele não passa por mim.

Descobri o restaurante que ele freqüenta e fui jantar.
Olhamos-nos muitas vezes, algumas pessoas do trabalho “um”
estão comigo e uma vez ou outra nossos olhos não se
encontram, mas logo eu conseguia ver onde ele estava
no meio da multidão.
Nessa noite quando eu estava de saída ele segurou meu braço
e perguntou meu nome. Eu disse meu nome a ele enquanto
minha amiga me puxava pelo braço para irmos embora.

Não demorou muito ele ligou para o meu trabalho.
Conversei com ele em tom de brincadeira, combinamos
um encontro para a noite seguinte.

Eu não fui.

Passaram algumas semanas, ele ligou novamente, inventei
uma desculpa qualquer e marcamos um novo encontro,
não fui. Não fui a mais dois encontros combinados.
No quarto convite aceitei.
Aceitei e vivi intensamente o que foi o maior amor da
minha vida.

Terminei várias vezes, não podia contá-lo que na
verdade eu o estava investigando. Quando ele dormia
no meu apartamento revistava a carteira, anotava todos
os números de telefone, da agenda e telefonemas recebidos,
cartões de visita, tudo que pudesse nos ajudar a incriminá-lo.
Fazia perguntas quando ele já estava embriagado.
Instalei escuta no carro.

Mas tudo que eu fazia perdia o sentido quando ele em troca
só me dava coisas boas.

Uma noite estava na minha cama dormindo quando abri
os olhos vi que ele estava a não sei quanto tempo na
penumbra do quarto olhando para mim enquanto eu dormia.
Apenas me olhava.

Nas manhãs frias de inverno eu acordava e encontrava bilhetes
de bom dia com um sol desenhado na letra “O”.
No meio da noite ele batia baixinho
na porta, quando eu abria, ele tirava as mãos das costas e
me entregava uma boneca com roupas cor de rosa,
um ramo de flores, um vinho.

Esperávamos todos irem embora do restaurante, que depois
descobri que era dele, uma luz suave iluminava o ambiente
e dançávamos juntos, fazíamos amor sobre as mesas ou
no sofá que havia no escritório dele.

Senti pela primeira vez o que é o amor

Mas eu não estava feliz, precisava terminar com aquele
trabalho o mais rápido possível, estava loucamente apaixonada.
Com ele descobri o amor carnal, o desejo, o afeto, o que é
humildade, aprendi a ver nele um homem com um coração
bondoso e muito, muito sensível.

Estava correndo risco de ser descoberta na noite em que
meu chefe ligou e ele estava na minha cama comigo.
Eu não conseguia mais mentir para ele, me conhecia bem.
Disse que era meu tio. Ele não gostou muito da resposta.
Mas logo esquecíamos tudo e vivíamos um mundo só nosso
onde tudo era perfeito, queríamos viver cada momento
como se fosse o último, no fundo nós dois sabíamos que
poderia acabar a qualquer momento.


Alguém bate a porta com urgência, já é madrugada, saio
da cama e vou atender apressada. Ele está coberto e sangue,
ferido nas costas com um tiro a queima roupa.
Fiquei alucinada, como podem ter feito aquilo sem terem
me avisado. Não me falaram que pretendiam matá-lo, falaram
que ele iria preso, que apenas buscavam provas!
Eles já tinham o que precisavam.

Quando ele já estava dentro da ambulância eu me aproximei
e disse que iria com meu carro para o hospital.

Ele me fez chegar bem perto do rosto dele e disse:
-Perdoa-me? Perdoa-me?

Respondo que sim confusa, não entendo nada.Logo o
medicamento fez efeito, ele adormece. Fico vendo a
ambulância se afastando sabendo que nunca mais o verei.


Volto para o apartamento, apago todas as lembranças dele.
Faço a mala apenas com o essencial e vou para o aeroporto,
preciso mudar de país.

Estava no aeroporto quando meu chefe ligou, disse que a
morte da minha família pode não ter sido um simples acidente.
Que ligou para o hospital e ele ainda estava na sala de cirurgia.
O detetive que atirou nele não entendeu a ordem de apenas
prendê-lo, como ele tentou fugir foi baleado.
Passaram uma informação errada de que meu irmão era o espião.

Aprendi a não confiar em ninguém.
Meu chefe falou isso para que eu tenha coragem de ir embora.

Eu sei que quando ele me conheceu numa outra cidade, com outro
nome, jamais desconfiou que a espiã que ele procurava era eu.


Chorei durante toda a viagem.

Vinte anos se passaram e ele vive até hoje
nos meus sonhos e na minha memória.

2 comentários:

Gustavo Casanova disse...

Como sempre, querida Nane, nos presenteia com um ótimo texto e uma ótima interpretação. A história em si é envolvente, nos faz pensar como a personagem, é impossivel não se sentir na pele dela ante essa "Escolha de Sofia". O amor dela as vezes é cegante da mesma maneira que a leva a descobrir novos horizontes.E toda a temática de espionagem torna-se um atrativo a mais... resumo: excelente, instigante, sensual e com um final surpreendente (pra mim não haveria final melhor). E mais humano possível.... estás de parabéns...

Anônimo disse...

Como sempre, querida Nane, nos presenteia com um ótimo texto e uma ótima interpretação. A história em si é envolvente, nos faz pensar como a personagem, é impossivel não se sentir na pele dela ante essa "Escolha de Sofia". O amor dela as vezes é cegante da mesma maneira que a leva a descobrir novos horizontes.E toda a temática de espionagem torna-se um atrativo a mais... resumo: excelente, instigante, sensual e com um final surpreendente (pra mim não haveria final melhor). E mais humano possível.... estás de parabéns...

Luis Gustavo