25 de set. de 2010

A Procissão


















-Mãe, estou cansado.

-Para de jogar bola meu filho, entra, toma um banho e vem tomar café.

A casa simples de madeira e chão batido de 3 cômodos é limpa e simples, os poucos móveis mantém a dignidade do lugar.

O vento cai leve junto com a tarde, o sol doura suas últimas cores, a morna brisa e o cheiro de pão caseiro tornam o ambiente aconchegante e acolhedor.

Meu filho mais novo, Antônio, um menino gorduchinho, alegre e ativo nunca para. Desde o amanhecer sai para brincar na rua, no gramado ao redor de casa, os cabelos louros e encaracolados brilham a sol, traz nos olhos ternura e ao mesmo tempo pressa de fazer tudo, não gosta de dormir, quer brincar, andar no meio dos animais, tomar banho de rio, andar atrás dos dois irmãos mais velhos, de mim ou do pai.

Passamos por grande dificuldade financeira, Silva foi vender uns bezerros para ver se arranja alguma dinheiro, precisamos de roupas e remédios. O inverno vem aí e as crianças estão precisando de roupas quentes.

Aos domingos é sagrado. Missa, almoço em família, tarde livre. A família toda em casa.

-Domingo que vem será especial. Será procissão de Nossa Senhora de Fátima, santa a que sou devota fervorosa e fiel. Quero todos na missa comigo.

Todos concordam.

Na segunda-feira a tarde estava terminando de colocar o pão no forno do fogão a lenha quando Antônio apareceu na porta. Como de costume vem correndo para na porta e fala:

-Mãe, estou cansado.

Nos seus quatro anos de vida ele nunca ficou doente. Mas hoje notei algo diferente. Os olhos caídos e o rosto muito vermelho. Não foi para o banho como de costume. Jogou-se no chão e ficou ali.

Fui correndo atendê-lo, algo estava errado. Mal encostei nele senti o corpo quente, ardendo em febre.
Levei-o para a cama no meu quarto. Busquei água morna e lavei rapidamente os pezinhos,a s mãos e o rosto.

-Jorge, vá rápido chamar o médico.

Jorge saiu apressado, já chorando. Ninguém fica doente aqui eem casa e uma dor de dente ou febre põe todos em pânico.

Logo o médico chega, receita um colher de um remédio que não conheço dissolvido em um copo de água, duas vezes ao dia, rodelas de pepino ou batata colocadas na testa e trocadas de vez em quando por rodelas fresquinhas para baixar a febre.

-Pode me chamar a qualquer hora, mas isso não é nada. É uma febre apenas.

Disse o médico com muita certeza. E foi embora.

Logo toda a família estava ao redor da cama, os irmãos com olhar de preocupação, o pai querendo disfarçar o nervosismo apenas olhava o filho de vez em quando sem nada dizer.

A febre baixou durante a noite, mas ele continua na cama, sem forças, fraco, molinho, a dobrinhas de gordura murcharam, os olhos vivos e alegres estão apagados e sonolentos.

Ele apenas diz:

-Mãe eu quero ir na procissão domingo.

-Sim meu filho, vamos todos juntos. Vamos rezar para Nossa Senhora e ela vai curar você.

Ajoelhei-me diante da santa que tenho no meu quarto, em cima da penteadeira, chorei e rezei pela saúde do meu filho.

A semana passou sem grandes melhoras, a febre sumiu mas ele continuou fraco e sem ânimo.

Sábado a noite a febre voltou. Medicamos segundo a indicação do médico, mas a febre não baixava.
Passamos a noite cuidando dele e preocupados com sua saúde, não existe hospital aqui. Somente um médico e mais nada.

Amanheceu o dia e nada de melhora. Próximo a hora da procissão Antônio me chamou:

-Mãe a senhora não vai na procissão?

-Não meu filho, vamos ficar aqui rezando para você melhorar.

Quando a santinha passar você vai ficar bom.

-Mãe, eu queria tanto ir.

Os olhos grandes e lentos, as mãozinhas quentes em vima do peito, os canhinhos desfeitos pelo suor da febre, a respiração lenta como água de Rio em tarde de outono. O menino lutava contra a sonolência da febre dormente para se manter acordado. Logo ouviu a voz dos irmãos.

-Mãe a santinha está passando.

Do quarto de Antônio ouvíamos as cantorias e orações. Quando a santa passou em frente a nossa porta Ântonio adormeceu profundamente.
Senti que a frebre baixou, Antônio dormia tranquilamente. Continuei rezando aos pés da cama. Pedia a Nossa Senhora que o libertasse daquela enfermidade.

Quando ouvi a procissão voltando, passando novamente na porta de casa olhei para Antônio e senti ele suspirar muito fundo e de repente seu semblante ficou em paz. Parecia sorrir.

Ele faleceu na hora em que a santa passou em frente a casa. Como ele queria foi embora junto com a santinha que ele adorava tanto.

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*O médico foi chamado novamente.

Achou estranho que o remédio não tivesse causado nenhuma melhora.

-A senhora dava que dose para o menino?

-Uma colher cheia pura, duas vezes ao dia.

O médico jogou-se numa cadeira ao lado da cama, levou as duas mãos a cabeça.
Seu olhar era de desolação, pesar e perplexidade.
Ele sabia que o remédio nessa dose para uma criança é puro veneno.

Foi embora sem nada dizer.

7 de set. de 2010

Sem Saída!!!














O apartamento espaçoso dava a impressão de ser assim por não ter quase nada dentro, apenas o suficiente, a campainha não parava de tocar e foram chegando homens, garotos, meninos.
O apartamento de repente ficou pequeno, todos conversam e bebem, outros se trancam na cozinha o que me deixa muito curiosa.

Raquel, mora comigo no apartamento, eternamente apaixonada pelo Mário, está fazendo este encontro para despedida dele.

Vai morar na França.
O Brasil ficou pequeno demais para ele, não o Brasil, a mente das pessoas do Brasil.
Ele é o que posso chamar de artista, nasceu para ser estrela, famoso, diferente, charmoso, sedutor e gay ou bissexual, não sei.
Tenho as minhas dúvidas quando a ele. Raquel dorme com ele e nada acontece.

Um tempo atrás eu estava na cozinha preparando um lanche, ele chegou por trás e me agarrou me deu um beijo tão louco e bom, me envolveu com aqueles braços finos e longos, os cabelos loiros cobrindo parte do rosto e um cheiro de menino que me tiraram o fôlego.  Depois voltou para a sala com os olhos mais inocentes do mundo.
Ah! Os homens!

Como eu não conhecia ninguém na festa fiquei no meu quarto lendo por algum tempo. Um deles veio me chamar. Léo, loiro, alto e muito engraçado, não resisti ao convite e me juntei ao pessoal na festa.
Vi que a cozinha estava fechada e quando abri a porta me surpreendi com uns quatro homens ao redor de um prato com várias carreirinhas de um pó branco, claro que percebi que era cocaína.

-Você quer?
-Não , obrigada. Só vim procurar um copo.

Nunca usei drogas, as não ser aquelas coisas secretas e inocentes que as adolescentes fazem junto com as amigas.
Escondidas no quarto eu e Raquel fumamos um cigarro de maconha.
Eu dei uma tragada e não parei mais de rir...achava graça de tudo. O quarto dela passou a ser engraçado, o rosto de Raquel ficou torto e sorria sem parar.
Nunca mais quis ficar sorrindo como um palhaço movido a pilha. Muito menos quero pagar o mico de ficar sorrindo sem parar na frente das pessoas. Lembrei do Coringa do filme Batman.

Num outro dia uma amiga que morava no mesmo prédio que eu veio me visitar, véspera de carnaval. Ela me deu um pouquinho de lança-perfume. Disse que eu só sentiria algo bom, que ninguém veria.

Experimentei. E Experimentei o gozo mais forte que já senti em toda a minha vida.
E nunca mais usei, ficava imaginando eu tendo um gozo no meio de um salão no meio da multidão no carnaval. Achava tudo engraçado. Mas sabia dos riscos e sabia que se entrasse no mundo das drogas e definhasse ninguém iria na sarjeta me salvar. A minha vida depois que saí da casa dos meus pais era eu e mais eu...e só.
Mas vendo toda aquela droga circulando no meio do meu apartamento me senti mal. Léo percebeu meu desconforto e me chamou para conversar na janela do apartamento.
Outras pessoas se juntaram a nós para ver a "máquina" que é o carro dele.
Um Landau azul piscina, todo equipado, lindo, estacionado na rua em frente ao prédio.

-Carro do meu pai, peguei escondido para sair hoje. Ele foi dormir cedo, quando acordar o carro já vai estar na garagem como ele deixou.

Aquele homem parecia um menino arteiro e eterno filhinho de papai.
Raquel chegou na sala com o tradicional bolo de aniversário com uma velinha em cima, um bolo simples que foi recebido como um banquete.
Mário apagou a velinha, cortou o bolo, distribuiu champanhe, olhares sorrisos.
A estrela da noite.

Fui para janela olhar a noite, a rua, pensar. Não me sentia muito confortável.
Mário veio me dar um abraço apertado.
-Vou sentir saudades, não esqueça de mim.
Eu sabia que nunca mais o veria.
Léo se juntou a nós na janela do apartamento e olhou para baixo. O carro dele estava lá. Continuamos os três conversando de repente Léo aponta o dedo para a rua em frente o prédio e aos pulos começa a gritar:
-Meu carro, meu carro, levaram o meu carro! Meu Deus, meu pai vai me matar. Chamem a polícia, me ajudem. O cara está levando meu carro.

Todos correram para a janela e olhavam incrédulos o carro azul deslizar suavemente pela rua que fica em frente ao prédio num terreno mais alto.
Léo não gritava mais. Só apontava o dedo desesperado imaginando já ver o carro desaparecer na curva no final da rua.

Rua sem saída.

O ladrão não conhecia o local, fez a volta com aquela banheira difícil de manobrar e voltou pela mesma rua.

-Olhem, ele voltou, o que faço? Me ajudem?

Mas todos continuavam incrédulos com a cena. O ladrão roubou o carro e não sabia que aquela rua não tinha saída, fez a volta e sumiu na noite escura.
Chamaram a polícia.
Era o que me faltava, quero distância da polícia e ver um policial na minha porta numa situação daquelas com drogas dentro do apartamento não era uma situação agradável.

O policial tocou a campainha, atendi, séria, ele também.
Perguntou quem é o responsável pelo apartamento. Respondi que sou eu. Ele fez mais algumas perguntas e mandou que Léo fosse a delegacia mais próxima fazer um boletim de ocorrências e foi embora para meu alívio.
Só me faltava ser presa por porte de drogas. Ou ser envolvida em algo desse tipo se nem uso nada disso.
A festa acabou. Todos foram embora.

Na hora de dormir Mário fez um pedido inesperado:

-Posso dormir no meio de vocês duas?
E assim dormimos os três juntos.
Mário no meio, mais parecia um menino indefeso do que um homem com segundas intenções.

No outro dia Léo ligou, o carro foi encontrado num bairro da periferia, com drogas e bebidas no porta-malas.

Mário foi embora.
Foi para Paris.
Nunca mais o vi, nunca o esqueci.

Na manhã do outro dia após a partida de Mário a vida voltou ao normal.
Trabalho, academia, casa.
Abro a porta do apartamento.
Um objeto prateado no chão brilha e chama minha atenção.
Uma das chaves do apartamento.

A chave de Raquel.

Entrei no quarto, procurei por todo o apartamento. Tudo vazio, as poucas coisas dela não estavam, procurei um bilhete, algo.
Nada
Ela sumiu.

Sem se despedir, sem dizer para onde foi, sem um obrigada, sem um desculpa não deixei dinheiro para as despesas, desculpa sair assim depois de tudo o que você fez por mim.

Simplesmente sumiu.

Vênus

6 de set. de 2010

Tanta saudade!!!!!


















Sinto saudades de tudo que marcou a minha vida.
Quando vejo retratos, quando sinto cheiros,
quando escuto uma voz, quando me lembro do passado,
eu sinto saudades...

Sinto saudades de amigos que nunca mais vi,
de pessoas com quem não mais falei ou cruzei...

Sinto saudades da minha infância,
do meu primeiro amor, do meu segundo, do terceiro,
do penúltimo e daqueles que ainda vou ter, se Deus quiser...

Sinto saudades do presente,
que não aproveitei de todo,
lembrando do passado
e apostando no futuro...

Sinto saudades do futuro,
que se idealizado,
provavelmente não será do jeito que eu penso que vai ser...

Sinto saudades de quem me deixou e de quem eu deixei!

De quem disse que viria
e nem apareceu;
de quem apareceu correndo,
sem me conhecer direito,
de quem nunca vou ter a oportunidade de ver novamente.


Sinto saudades dos que se foram e de quem não me despedi direito!

Daqueles que não tiveram
como me dizer adeus;
de gente que passou na calçada contrária da minha vida
e que só enxerguei de vislumbre!

Sinto saudades de coisas que tive
e de outras que não tive
mas quis muito ter!
Sinto saudades de coisas
que nem sei se existiram.

Sinto saudades de coisas sérias,
de coisas hilariantes,
de casos, de experiências...
Sinto saudades do cachorrinho que eu tive um dia
e que me amava fielmente, como só os cães são capazes de fazer!

Sinto saudades dos livros que li e que me fizeram viajar!

Sinto saudades dos discos que ouvi e que me fizeram sonhar.

Sinto saudades das coisas que vivi
e das que deixei passar,
sem curtir na totalidade.

Quantas vezes tenho vontade
de encontrar não sei o que...
não sei onde...
para resgatar alguma coisa que nem sei o que é e nem onde perdi...

Vejo o mundo girando e penso que poderia estar sentindo saudades
em japonês, em russo,
em italiano, em inglês...
mas que minha saudade,
por eu ter nascido no Brasil,
só fala português, embora, lá no fundo, possa ser poliglota.

Aliás, dizem que costuma-se usar sempre a língua pátria,
espontaneamente quando
estamos desesperados...
para contar dinheiro... fazer amor...
declarar sentimentos fortes...
seja lá em que lugar do mundo estejamos.


Eu acredito que um simples
"I miss you"
ou seja lá
como possamos traduzir saudade em outra língua,
nunca terá a mesma força e significado da nossa palavrinha.

Talvez não exprima corretamente
a imensa falta
que sentimos de coisas
ou pessoas
que sentimos de coisas
ou pessoas queridas.

E é por isso que eu tenho mais saudades...

Porque encontrei uma palavra
para usar todas as vezes
em que sinto este aperto no peito,
meio nostálgico, meio gostoso,
mas que funciona melhor
do que um sinal vital
quando se quer falar de vida
e de sentimentos.

Ela é a prova inequívoca
de que somos sensíveis!

De que amamos muito
o que tivemos
e lamentamos as coisas boas
que perdemos ao longo da nossa existência...


Clarice Lispector

Quem sou eu?












Gosto dos venenos mais lentos, das bebidas mais amargas, das drogas mais poderosas, das idéias mais insanas, dos pensamentos mais complexos, dos sentimentos mais fortes… tenho um apetite voraz e os delírios mais loucos.

Você pode até me empurrar de um penhasco que eu vou dizer:

- E daí? Eu adoro voar!

Não me dêem fórmulas certas, por que eu não espero acertar sempre.
Não me mostrem o que esperam de mim
por que vou seguir meu coração.
Não me façam ser quem não sou.
Não me convidem a ser igual, por que sinceramente sou diferente.
Não sei amar pela metade.
Não sei viver de mentira. Não sei voar de pés no chão.
Sou sempre eu mesma, mas com certeza não serei a mesma pra sempre.

Clarice Lispector

The Big Boss- Velvet




















Dezenas de pessoas reunidas num salão esperando.
Eles chegam. Um deles o mais jovem é extrovertido, alegre, fala mais. O outro, mais sério e de poucas palavras, mais observa do que fala.
De repente o mais observador faz uma pergunta com sotaque paranaense:

-Qual seu manequim? Qual o número de calça que você veste?

Olhei para as meninas ao meu redor, ninguém falou nada, olhei para ele.

-Eu?

-Sim, você de calça rosa.

Corei na hora. Fiquei rosa, carmim. Senti calor, queria ficar invisível. Será que a minha calça justa, rosa, com uma blusinha preta chamou atenção demais? Senão como ele conseguiu me ver no meio da multidão?

-38. Respondi.


Trabalho a noite. É um ambiente elegante, refinado. A maioria dos frequentadores são homens solitários, ou entediados da vida, viciados ou com dinheiro demais na conta bancária.

Meu uniforme é charmoso, camisa branca, calça e colete preto com um lenço no pescoço. Sempre maquiada e perfumada. Meu único pecado é o batom vermelho nos lábios grossos e lingeries provocantes por baixo daquela roupa toda.

Cinta liga com meias 7/8 brancos e sutiã transparente branco. Espartilhos pretos com meias 7/8 pretas. Era um segredinho que me fazia sentir sexy em baixo daquele roupa que só deixava de fora minhas mãos e meu rosto.

Jô o sócio mais jovem da empresa começou a me chamar nos intervalos para conversar. Logo começamos a nos encontrar depois do trabalho, no salão de reuniões beijos secretos e desesperados, recadinhos, carona para casa, olhares, presentinhos. Ninguém desconfiava.

Meu chefe, um homem gordo e arrogante, baixinho e antipático. Logo de início nossos santos não bateram. Ele se insinua para todas as meninas e elas vivem ao redor dele, brincando, conversando, agradando. Eu falo o necessário. O resto do tempo o ignoro.

Isso o deixa furioso. Sinto no olhar dele que ele não engole minha indiferença.

No afã do desejo Jô abre os botões da minha camisa branca e começa a abrir minha calça, me beija, me beija, dobra meu corpo sobre a mesa da sala. Ouvimos um barulho e a porta se abre. Esquecemos de chavear a porta e não deu tempo de me vestir. Os olhos de surpresa e de raiva do chefe "Garcia" estavam vermelhos e ao mesmo tempo não paravam de olhar meu corpo.

Rapidamente Jô foi até ele e falou:

-Não abra o bico com ninguém. Não entre mais aqui sem bater antes. Saia daqui imediatamente.

O chefe "Garcia" saiu furioso. Com certeza vai se vingar de ter sido enxotado, de me ver com o Jô, vai se vingar em mim.

Primeiro ele ficou muito bonzinho até meloso demais, me liberava mais cedo, mudou meu setor, almoçava na mesma mesa que eu para jantar. Mas eu não mudei meu comportamento com ele. Sabia que ninguém muda assim tão rapidamente de casca grossa para um homem gentil e respeitoso. Eu estava esperando o bote.

Três horas da manhã, cansada, louca para tirar o uniforme e ir correndo para casa.
O Jô me levava para casa todos os dias, mas agora estamos mais discretos, o transporte da empresa me leva junto com os outros funcionários.

Estou já sem o uniforme só de lingerie quando ouço a porta bater, naquela hora imagino que é uma das colegas correndo também para se trocar para dar tempo de pegar o transporte.

Abro a porta e dou de cara com o "Garcia". Suando, com o rosto vermelho, camisa aberta até o peito arfante e os olhos estranhos de uma fera faminta.
Ele empurrou a porta da sala de trocar roupas e veio para cima de mim com tudo, tentou me tocar e tirar minha lingerie, com pouca roupa é difícil fugir.
Grito, arranho, mordo aquele corpo branco e enorme até que ouço a voz do sócio da empresa que estava no escritório dele ao lado.

-O que está acontecendo aqui?

Will pegou "Garcia" pelo pescoço, tirou ele de cima de mim, mandou ele ir para casa e que voltasse no outro dia para conversarem. Ele sai mais uma vez escorraçado e furioso de perto de mim. Antes de sair ele olha pra mim e fala:

-Você não tem um caso com o Jô? Pode ter comigo também, qual o problema? Vou contar para todo mundo, vou acabar com você.

Eu fiquei chorando no canto, no chão da salinha só de calcinhas, tentando tapar meus seios com as mãos, tremendo de medo e de frio, raiva, humilhação e impotência.

Will gentilmente me cobriu com seu casaco:

-Vista-se eu espero você aqui fora. Acalme-se.
Eu me vesti e não queria sair da sala, demorei muito até que Will bateu levemente na porta.

-Abra, vamos, você precisa descansar, sair daqui.

Saí da salinha e encontrei Will andando de um lado para o outro, fomos para a sala dele.
Ele avisou ao motorista do transporte que eu iria depois para casa, que ele estava liberado.
Eu não conseguia olhar nos olhos dele, sentia vergonha e não sei mais o quê.
Com a voz grave, tom baixo, calmo ele começou a falar o que eu temia ouvir:

-Olha, você não precisa se preocupar quanto ao seu chefe, ele será demitido amanhã mesmo, mas temos um problema mais sério aqui para resolver.

Quando abrimos a empresa meu sócio e eu combinamos que não haveria envolvimento com nenhuma funcionária. Sou além de empresário, advogado e sei que em muitos casos isso pode virar um processo de assédio sexual. O Jô é uma pessoa boa, não vê maldade em nada, mas é um pouco impulsivo e imaturo. Não sei se você sabe, mas ele tem uma namorada e vai ficar noivo em Maio. Se afaste dele o quanto antes, logo todos saberão, seus colegas podem começar a tratar você mal. Estou falando isso para o seu bem. Você pode contar comigo. Sou seu amigo aqui dentro. Agora vamos, vou levar você para casa.

Aquelas palavras todas me deixaram muito mal. Pior do que eu já estava. Entrei no carro dele, parecia uma nave espacial com tantos botões e luizinhas coloridas, uma voz femina dando os comandos. Só sei que é uma BMW. O carro deslizava silencioso e lentamente pelas avenidas desertas na madrugada. Os sinais piscavam sem parar. Will não falou nada e eu nem consegui imaginar palavra para dizer naquele momento.
Mas me sentia bem ali com ele, a presença segura dele me passava uma calma e segurança que nunca senti antes.
Will parou o carro em frente ao meu prédio. Eu disse obrigada e desci. Ele esperou que eu entrasse no hall para ir embora.

Nas semanas seguintes mudou tudo. "Garcia" foi demitido.
O outro chefe é sério e justo.

Passei a perceber uns olhares diferentes, alguns comentátios pelos cantos, mas não me deixei abater. O mais estranho é que me sentia mais forte. Venci um crápula. Ele levou a pior.

O ambiente de trabalho sofisticado e elegante recebia somente pessoas de alto nível, mas num dos setores notei que um senhor sempre de boné, muito fraquinho e simpático, distribuía balas paras as minhas colegas todos os dias. Hoje estou no setor onde está sua mesa predileta, quase no final do salão, num canto mais reservado.

Atendo-o educadamente. Ele sorri e me oferece uma balinha importada de morango deliciosa.
Eu aceito e agradeço. Ele me chama várias vezes, faz vários pedidos. Quando já estamos quase fechando a casa ele se levanta, chega bem perto de mim e pergunta num sussurro no meu ouvido:

-Você tem pêlos nos seios?

Não respondi nada. Saí de perto dele. Senti meu corpo sendo invandido, senti que enquanto eu trabalho aquele senhor de aparência respeitável me desnuda imaginando como é meu corpo.

Me senti nua.

Quando eu estava chegando na mesa da sala principal onde eu deixo meu material de trabalho para depois subir e trocar de roupas meu colega Luis me entrega um bilhete:

"-Sua boca vermelha, doce veneno." Anônimo.

-Luis quem entregou isto para você?

-Um homem que vem sempre aqui, fica no sala vip. Amanhã mostro ele para você, ele vem todos os dias.

-Obrigada. até amanhã.

Que noite. Que trabalho. Que loucura. Preciso mudar de vida. Sou um objeto, um corpo sendo desnudado e observado a cada movimento. Preciso ir embora daqui, vou procurar um novo emprego. Pensei. Não imaginava o que estava para acontecer.

Nas noites seguintes pedi para mudar de setor, fui para uma parte mais clara do salão perto do buffet onde as senhoras gulosas ficavam para circularem mais facilmente do buffet para as mesas de jogos.

Will me olha, passa por mim e sinto seu perfume me inquietar, inebriar meus sentidos. A lembrança daquela madrugada silenciosa ao lado dele me despertou algo. Talvez o abraço que não recebi e precisava tanto.

Ele me observa de longe, olha nos olhos, está sempre onde estou, passou a participar de eventos dos funcionários que ele nunca particava antes.

Eu atenta a tudo. Só o observo também.

Numa madrugada fria, no final do expediente Will surprende a todos avisando que o jantar no restaurante ao lado da empresa é por conta da casa.

Poucas pessoas puderam participar, já era quatro da manhã. Celinha
minha única amiga na empresa me perguntou:
-Você também está afim dele?
Eu me fiz de desentendida:

-D'ele quem?

-Do Will.

-Capaz!!! Ele nem me vê no meio de tantas mulheres lindas.

-Ele vê sim. Ele está louco por você, todo mundo já notou. Ele é separado, está só. Não tem nada demais você sair com ele.

-Ah! Não! Quero ficar na minha, estou pensando em sair daqui.

Dois amigos nossos chegam ao restaurante. Celinha me convence a sair dali com eles. Quando estou dentro do carro, olho para trás e o vejo seguindo nosso carro com os olhos. Pensei:

-Ele me quer, mas ele deve ter todas as mulheres que deseja, não quero ser mais uma.

Mas eu já estava o desejando também e quando na noite seguinte, no final do expediente ele fez um reunião rápida com os funcionários, reunião inesperada e inédita ás três da manhã eu entendi qual o objetivo dele. Claro que senti uma vaidadezinha me fazer sorrir.

No final da reunião ele pergunta:

-Alguém vai para o centro?

Eu levantei a mão. Só eu.

E assim cruzamos a cidade novamente juntos, novamente pelas ruas desertas, ouvindo música e conversando, parece que eu já estive com ele, que já o conheço há anos. O carro desliza sob uma chuva fina, a mesma chuva que pede um aconhego.

Ele para o carro um pouco mais a frente da entrada do meu prédio.
Olha pra mim, me puxa para os braços dele e me beija pela primeira vez.

Que beijo bom!!!! Como eu desejei este beijo e como negava que desejava!
Tudo nele me envolveu, o beijo, o cheiro, o abraço quente, as mãos suaves e firmes tocando meu corpo.

-Preciso ir.

-Você não precisa ir. Passe o resto da noite comigo. Por favor.

-Eu quero Will, mas não devo.

-Se você quer, vamos. Não deixe de fazer algo que você deseja.

-Você tem razão. Vamos.

Ele ligou o carro, em cinco minutos estávamos no yate dele, âncorado no veleiro perto da minha casa.
Mal conseguimos esperar chegar ao veleiro, meu corpo queimava de desejo do carinho e dos beijos dele.
No yate bebemos wiski cawbói, fiquei um pouco tonta, wisky forte, incorpado.
Nos beijamos na sala, no sofá, ele arrancou toda minha roupa e descobriu minha lingerie sexy, ficou louco!

Fiz amor com ele com tanta paixão, até estranhei, como neguei por tanto tempo o que sentia, por medo de sentir. Quando estava quase amanhecedo fomo para a cama dormir.
O balanço leve do mar, estar ali com ele. Adormeci nos braços dele.

Quando acordei ele estava chegando no quarto do yate com uma bandeija. Nosso café da manhã. Adorei.
Me vesti, ele tbm. O marinheiro dirigiu o yate por toda a beira mar. Deixou-nos no trapiche da beiramar. Lá estava estacionada a BMW. Me levou para casa.
Parecia tudo um sonho. Não queria mais acordar.

O romance continuou por meses e meses. Até que um dia assim que ele me deixou em casa após uma noite maravilhosa decidi que iria sumir da vida dele. Nossos mundos são opostos, ele vive uma vida e eu outra totalmente diferente. Eu levo uma vida simples. Moro com uma amiga e não tenho muitas chances de melhorar rapidamente de vida.

Também sou contra a desigualdade social, muitas coisas que vi enquanto eu estava com ele, na casa dele, no yate dele me fizeram pensar que a maioria das pessoas não imagina como a vida pode ser um sonho bom quando se tem muito dinheiro. Por quê poucos tem tanto, muitos tem pouco, alguns não tem nada.

Mudei no mesmo dia de apartamento, mudei o número do celular e não deixei meu novo endereço com a amiga que divide apartamento comigo.

Eu sei. Fui convarde.

Meses depois encontrei uma amiga, fomos para um café, ela disse que precisava falar comigo.

-Você sabe o que aconteceu com a Rafa?

-Não, depois que saí do apartamento nunca mais falei com ela.

-Ela me procurou, disse que o will andou desesperado atrás de você, que todas as noites, procurava por notícias suas na portaria onde ele havia deixado um recado caso você aparecesse, até que um dia a Rafa vendo que ele estava muito aflito resolveu deixar ele subir e falar com ela. Ela o consolou, ele começou a ir lá mais vezes, acabaram transando uma noite. O que ele não sabia é que ela tinha AIDS.
-Ela morreu no final do mês passado.

-Ele está no hospital, acho que você deveria visitá-lo.
A cada palavra dela eu me surpreendia mais e mais. Da decepção a preocupação, do ciúmes ao entendimento, tudo ao mesmo tempo.

Mandei flores e um cartão:

"Jamais o esquecerei." Velvet
 
 
Vênus