20 de jun. de 2011

Luvas Pretas


Luvas pretas.
Foi o que ela deixou para trás. Esquecida displicentemente sobre a escrivaninha. Terá sido de propósito? Uma lembrancinha de como terminou aquilo que era para ser apenas um jantar, mas acabou na cama. Na minha cama.
A manhã de inverno gelada. Só mais dez minutos. Banho quente, croissant, café com leite, mais leite. Jornais. Rua. Estaciono o carro próximo ao escritório. Não tão perto que não tenha que andar pela rua principal. Lotada de pessoas apressadas, taciturnas. Sinto-me invisível na multidão.
Do outro lado da rua Ela.
Não deixei de notar que de todas as mulheres que passam por mim ela é a única que está de vestido. Meia calça, salto alto e casaco 7/8.
Negros cabelos ondulados não me deixam ver seu rosto. Dançam suavemente moldando seus traços. Lábios carmim. Alva pele. Negros olhos. Andar languido.
Ela não nota minha presença.
-Preciso fazer alguma coisa antes de perdê-la de vista.

Banho quente, café preto. Música para vestir-me. Ritual. . Chanel e batom. Observo meu corpo nu no espelho do quarto. Penso nele. Visto-me para ele. Mesmo que hoje eu não o encontre
A rua lotada, preciso correr, tem um contrato importante para fechar. Dizem que o empresário é casca dura. Ah deixa comigo. Adoro dominar o tipo sanguíneo. O vento frio gela meu rosto e corpo. De repente sinto que está faltando alguma coisa.
Sinto a meia calça roçar minha pele. Esqueci-me de vestir a calcinha, se pudesse andaria sem, sempre.
Estou sendo seguida ou é impressão minha? Do outro lado da rua, mesmo sem virar o rosto, percebo que um homem acompanha meus passos, no mesmo ritmo.
Sinto o olhar dele.
Ando mais rápido. Preciso entrar em algum lugar. Desviar meu caminho até ter certeza de que estou segura. Entro numa farmácia, a balança virada para a rua. Olho discretamente e o vejo.
Parado olhando a vitrine de uma loja de roupas masculinas, no outro lado da rua. Deve estar me observando pela vitrine da loja ou é paranoia?
Saio pela porta lateral e continuo meu caminho. Cada um que aparece!
Não deixei de pensar no estranho homem do outro lado da rua. Alto, cabelos muito curtos, barba muito baixinha. Bem vestido. Intrigante. (quer dizer: interessante)
No prédio de 12 andares.
-Por favor, posso falar com o Sr. Adriano?
-Ele acabou de chegar. Você pode aguardar uns 10 minutos?
-Sim, claro. Obrigada.
A recepcionista, uma mulher de uns 50 anos, elegante e tranquila fala com ele ao telefone.
-Sim, ela está aqui. Não posso fazer isto. Está na agenda, ela sabe que o senhor está aqui.

Ela olha para mim e tenta disfarçar. Mas entendi que ele não quer me atender.
-O Sr. Adriano está numa reunião e vai demorar. Você se importa de voltar no final de tarde?
-Não. Não poderei voltar no final da tarde, Tenho que visitar outro cliente e não posso remarcar.
A porta da sala dele abre e o homem do outro lado da rua aparece.
 
Ela percebeu que a estou observando. Entrou na farmácia e não saiu mais de lá. Olho para uma vitrine. Olho sem ver. Só um pensamento. Ela! Quero ao menos saber o nome.
Depois de meia hora já não consigo disfarçar. Os vendedores me olham de dentro da loja, devem achar que sou maluco. No mínimo narcisista.
-Cara, entra lá. Seja cara de pau mesmo. Pode ser sua última chance de encontra-la.
Na farmácia poucos clientes. Compro uma coisa qualquer. Olho ao redor. Ela não está aqui.
-Fugiu, sumiu. Será que ela percebeu que eu a estava seguindo?
Saí também pela porta lateral.
-Ela sabe. Ela viu que eu a seguia. Sem chance.
Volto á rotina. Marquei com uma consultora, mas não quero falar com ninguém hoje de manhã. Na sala de espera ela me aguarda, tento dispensa-la, mas a moça parece insistente.
Vou deixa-la esperar.
Dulce me liga informando que a moça insiste em falar comigo.
Decidido a expulsá-la dali eu mesmo abro a porta da sala e não acredito no que vejo.
Ela.
Nossos olhares se cruzaram surpresos. Como se já nos conhecêssemos. Como se já fossemos cumplices. Em segundos tomei uma decisão.
Eu a quero.
Na minha sala, na minha cadeira, na minha vida.
Mas ela parece resistir. Não demonstra interesse. Termina de falar dos detalhes e me pede para assinar o contrato. Gestos delicados e elegantes.
Despedimo-nos formalmente. Ela deixa um cartão. Não a deixarei sumir novamente.
 
Na sala dele. Decorada com muito bom gosto. Os livros e DVDs chamam minha atenção. No canto, ao lado de um grande armário de madeira escura uma adega. Estanho. Adega no escritório?
Será que ele faz festinhas aqui.
-Ah! Não é o que você está pensando. Sou apreciador de vinhos e recebo vinhos de clientes e amigos ou que trago nas viagens que faço.
Tinto, carmim? Não sei, apenas senti que corei.
Ele me observa, sinto os olhos dele me desnudando. Será que um homem pode saber quando uma mulher está sem calcinha? Será que imagina as fantasias que temos em qualquer hora do dia? Fantasias impossíveis de se realizarem. Fantasias que só dão prazer por que são fantasias? Ou será que não?
Desço o elevador. Uma sensação estranha toma conta de mim. Ímpeto de voltar e falar mais com ele, saber mais. Entender o que querem aqueles olhos de interrogação.
O telefone toca. Já estou em casa. Ele.
-Sim, posso voltar ainda hoje só preciso de uns quarenta minutos.
Ele quer alterar algo no contrato. Marcamos de nos encontrar no hall do hotel onde está hospedado.
Sem problemas. Consigo fazer isso sem me deixar ser surpreendida.
O hall está vazio. Apenas duas pessoas na recepção do hotel. Olho ao redor. Ele está no bar do hotel. Já é noite. As luzes acesas e uma música suave. Perigo.
-Isso aqui não parece um ambiente para revolver assunto de trabalho.
-Não. Por isso mesmo chamei você aqui. Drinks e mais drinks. Afinidades e olhares.
Quarto 906
Acordo e sinto o corpo dele colado ao meu. Nu. Quente. Relembro tudo o que aconteceu. 
Louca!
Vesti-me sem fazer barulho. Deixei a luva de recordação daquela noite maravilhosa. Gostaria de revê-lo. Ainda dorme.
Senti que se acontecesse um segundo encontro me apaixonaria. Ele tem tudo a ver comigo. Tudo. Além de ser persistente. Sei que se eu não sumir ele vai atrás de mim e eu não saberei dizer não.
Fecho a porta e desço para a branca manhã coberta de bruma.
Ainda na lembrança a sensação do corpo dele junto ao meu, o sabor dele na minha boca e o perfume dele atordoando meu pensamento.

Luvas pretas.
Mais nada, nenhum bilhete.
Ela se foi. 
Ligo para o celular. Fora de área. Liguei mil vezes. Telefone não existe.
Procurei pela cidade. Nunca mais a encontrei.



NANE

22 comentários:

Nina Pilar disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Nina Pilar disse...

lindo e surpreendente seu textos, gostei...vou voltar...beijinhos...

Só o Rock Alivia disse...

As coisas acontecem como poema, todos os sentidos juntos em uma bela composição. Momentos tensos, intensos e quentes. Detalhes rubros fazem do texto uma linda pintura a ser admirada.

Parabéns pelo texto

MarquesK

Só o Rock Alivia

Laura_Diz disse...

Gostei.
Lembram os meus, só q são mt menores.
Bj Laura

Unknown disse...

Nossa, fiz parte disso tudo que vc escreveu, lindo demais, incorporei personagem, e arrepiei. Dá uma mistura de sentimentos incríveis,
emocionante ...

jdariosjunior disse...

Lindo, lindo querida! Mistura de prazer, amor, desejo.. Gostei muito poet'anjo! Adoro você! Estava com saudades dos seus contos! Beijos mil.

Jane Di Lello disse...

Olá linda Princesa!Não conhecia seu lado escritora. Amei.
Na vida realmente existem encontros e desencontros, paixões e amores, sonhos e ilusões.
As paixões são como ventanias, que enfunam as velas dos navios. Algumas vezes os submergem, mas sem elas não se pode navegar.
Assim como sem amor não poderíamos existir.
Parabéns Princesa Nane pelo lindo texto.
BeiJanes neste coração de poetiza.
Jane Di Lello.

Nilson Barcelli disse...

Há quanto tempo não te via... estava convencido que tinhas abandonado o blog...

O teu conto é muito bom. Gostei do enredo e da forma como o desenvolveste. A narrativa é apelativa para a leitura.

Beijos, querida amiga Nane.
Volta, estás perdoada... rsrs...

Anônimo disse...

Oi, Nane!
Amei...
A narrativa é instigante, prende a atenção e leva o leitor a participar a cada instante destes momentos de cumplicidade desejo e fantasias...

Vc é uma flor rara *-*
;)Bjkas

Tó Pachêco disse...

Olá Eliane Estou sem palavras. Adorei demais o teu conto. Simplesmente Maravilhoso, Lindo e Bélo, está tão bem formulado, que parecia que estava vendo um filme, vendo os personagens e imagens a medida que ia lendo. Parecia muito real.

Parabéns!!!...

Eliane Vou deixar este para ti.

Este seria o pensamento dela, depois de ela deixar a luva como lembrança e recordação. Espero que gostes. Beijo teu amigo.


Entro no tempo.
Rasgo as horas enxoto os minutos
Sento-me na cadeira de mim.
Espero o teu alvorecer
Surges trazendo em ti a luz do sol.

Pousas a tua sombra

Num esmagar de palavras varres o som
Olhas para mim com olhos que não vêem
Alma que se perdeu.

Coração cerrado.

Limpa tua sombra.
Deixa teu corpo.
Varre o tempo.
Asila em mim
Veste-me.
Sinto-me nua de ti..

Anônimo disse...

Gostei! Parabéns!
O que mais me chamou a atenção é que parecem duas pessoas que fizeram o texto. Vc conseguiu "interpretar" seus personagens através das letras.
Continue, não pare...
Um abç

Anônimo disse...

Ops! Não sou a "anônimo" aí de cima, sou a @mania__
Rsrs

Shasça disse...

O diálogo é bacana e o conto me lembra frase de um filme pela qual uma das personagens se pautava: "na dúvida, lance o torpedoque amanhã poderá ser tarde".
Mantenha o pique!
Bejotas
{8¬)

Beatleholic disse...

Nane neste conto, faz uma dança de almas que pulsam sobre um desejo comum entre si - o de serem uma por um instante, e um par de luvas pretas deixadas como o símbolo de um pecado que se mantido perde a magia que entre corpos e sentidos existe, e migra de histórias, volátil que é e assim, eterna.

anice disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
anice disse...

Cada momento causou ansiedade, desespero para saber o momento seguinte, a delicadeza do instante, o coração pulsante transbordando de duvida, extremamente prazeroso.

Daniel Aladiah disse...

Querida Eliane
Como regressada de uma viagem, procurando as faces conhecidas... sabe bem sentir que recordas, como eu recordo...
Beijo
Daniel

A b e l disse...

Ficam os objetos, ficam os pedaços de nós roubados por eles.

Quando der visite o meu http://www.escritosbe.blogspot.com/

Abçs!

Anônimo disse...

Como traduzir algo que é tão imaterial como o desejo? Não seria apenas para sentir?
Acredita nisso, até ler luvas pretas.
Escrever e causar desejos é uma arte que vc domina.
parabéns

Pacman

Nilson Barcelli disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Nilson Barcelli disse...

Não pode ser... eu chego e tu desapareces?
Querida amiga Nane, tem um bom fim de semana.
Beijo.

Anônimo disse...

Lindo Nané... temos de regressar ao chanel five..
Hugo58