24 de set. de 2011

Soledad



















Foi como beber uma dose de uísque bom. Desce pela garganta e amarga quente nas entranhas. Alivia a dor. Entontece! Deixa tudo mais leve e claro, tudo mais natural e permissível ou seria possível?

Desde que o vi na sala de dança senti algo diferente. A timidez no olhar e uma altivez de dançarino andaluz, cigano ou seria árabe? Que mundo ele transita? Que medos o deixam assim tímido? Que paixões viveu que o tornam sensual e intrigante?

Danço para ele, em volta dele, somos envolvidos num clima de mistério, feito imã meu corpo quer aproximação e o dele me segue altivo e belo, colado ao meu. Esquecemos tudo enquanto a música toca em meio ás nuvens de gelo e os corpos fazendo um baile ao nosso redor. Nossos lábios quase se tocam provocantes e sedentos, nossas mãos cruzam-se e perdem-se no compasso do tango. Colados um no outro reconhecemos em nós os opostos ou seriam os iguais? Não pensei! Senti!
Ouvi os últimos acordes.

-Não posso ficar. Tenho que ir.
-Por favor, não. Fique mais um pouco. Eu levo você para casa.
-Tenho que ir. Boa noite!

Quando viro as costas sinto um aperto na minha cintura, as mãos dele em volta do meu corpo e um beijo roubado. Como se aquele beijo não fosse o primeiro, como se o cheiro invadindo meu desejo não fosse desconhecido. Retribuí. Saí apressada.
-Como é seu nome?
-Soledad.

Voltei á vida normal, aulas de dança, apresentações, trabalho e um pensamento.
O andaluz!

No auditório lotado de empresários e visitantes esperamos no camarim até a hora da apresentação.
-Soledad você vai fazer apresentação solo hoje?
-Sim. A última música.

O ruim de fazer apresentação solo é que tenho que esperar sozinha no camarim até os dançarinos terminarem as outras apresentações. Música, palmas e gritos, excitação da plateia. Clímax!
Alguém bate a porta.

-É a sua vez Soledad.
Retoco o batom cor de carne, o perfume, me olho no espelho mais uma vez.

A música começa. Um violino, num lamento lança notas envolventes. Esqueço tudo! As cortinas se abrem. Escuridão total. Entro no palco, me posiciono num passo do tango solitário. A luz me ilumina.
Danço como se fosse apenas para ele ou com ele.

Todos os passos do tango sem parceiro. No momento em que a música chega ao clímax, puxo uma parte do longo vestido preto com uma grande fenda lateral. Mais sensual e acelerada minha dança faz meu corpo se soltar e em gestos longos e sensuais leva a plateia a gritar e a aplaudir no escuro. Não sei quem são. Nem sei quantos são. Dancei para ele esta noite. Dancei com ele no pensamento.
A luz se apaga. A cortina se fecha. Sozinha pelos corredores como sempre, flores no camarim, fãs, alguma ou outra entrevista. Casa.

Chego ao camarim. Flores vermelhas e um cartão.
“Vem dançar comigo como naquela noite? Javier”

Um bilhete e um telefone.
Ligo. Ninguém atende. Quase todos já se foram, os amigos foram para o bistrô. Ruas vazias e carros silenciosos passam por mim. A luz cambaleante e dourada fazendo desenhos tortuosos nas poças de água fresca da chuva de outono.

Não quero entrar num táxi. Prefiro caminhar até minha casa aqui perto, assim sinto os pingos da chuva confundirem a chuva com ás lágrimas.

Não entendo ainda o que aconteceu. O bilhete, o telefone mudo. A vontade latente de revê-lo. Entro pelo beco na rua antes da minha casa. Uma rua suja estreita de prédios antigos. Mal iluminada e perigosa. Á noite travestis atravessam a madrugada a espera do calor do banco de trás de um carro e garantia do café quente do dia seguinte. Na porta que dá acesso a quartinhos estreitos no segundo andar esperam por clientes, mulheres de todas as idades, no meio da multidão que passa sem vê-las, passam o dia a espera de um cliente e de um dia mudar de vida. Sair da “vida”.

Um empurrão nas minhas costas , sinto meu rosto colado a uma grade de ferro enferrujada, fria e áspera como faca.

Mãos sedentas e sem cuidado tocam meu corpo, por baixo do vestido, ele cheira minha nuca, sinto a respiração ofegante e o cheiro que jamais esquecerei. De homem, de tesão, de medo, de suor, de perfume, de cigarro talvez.
-Pode levar tudo, mas não me machuque, por favor.

Ele não responde.
-Olha não tenho muito, mas tenho celular, relógio, joias e dinheiro.

Silêncio.
Preciso ganhar tempo e a confiança dele, preciso ver o rosto dele. Mas não posso me virar bruscamente.

Ele arranca meu relógio e joias. Junta minha bolsa do chão e vai embora, sem dizer nada desaparece como o vento.
Em casa, assustada ainda e sem saber o que fazer tomo uma ducha quente enquanto revivo os momentos de medo que passei.

Ele levou meu celular. A bolsa e o bilhete. Não tenho como ligar para Javier.
O som estridente da campainha ecoa pela casa. Visto um roupão e vou até a porta. Surpresa. Javier.

-Como ele chegou até aqui?

Estou de roupão, meus cabelos estão molhados, estou sem maquiagem. Tarde demais.
Abro porta.
Paramos um segundo para nos reconhecermos. Num gesto apenas, ele estende as mãos e me leva para seus braços, de onde não quero mais sair até...até o amanhecer.

O roupão branco caído no chão, um bilhete no travesseiro ao meu lado.
“Você é linda. Volto quando puder.”
Suspirei.

A experiência de vida me faz ver, ler, sentir, mas ficar com um pé atrás, eu não confio em tudo que vejo. Acho que tudo tem dois lados, ou não, fico atenta como uma gazela languidamente deitada, mas com todos os sentidos atentos, e as cicatrizes a secar.
Quando vou descer da cama vejo um pequeno papel rosa, igual o que uso na minha bolsa para fazer anotações, frases soltas, um telefone, fragmentos.

-Como esta anotação pode estar aqui?
A anotação do horário e local da próxima apresentação.
Muito intrigada procuro pela casa mais pistas como aquilo foi parar ali. Nada.

Vou até a delegacia, registro boletim de ocorrência. Chego ao teatro, mas não consigo me concentrar. Vou até o carro.
Noite, quem está na rua não me vê. Vidros escuros. Logo Javier aparece.

Parece desconfiado, olha para os lados, está inquieto. Para em frente ao teatro, faz uma ligação. Devem ter dito que já saí.
Sigo-o.

Ele vai até minha casa, ronda a casa e insatisfeito segue. Entra por uma rua mal iluminada e torta. Para em frente a um prédio antigo, com pintura descascada, janelas de madeira quase deterioradas.
A luz do andar de cima é acesa. Vejo pelo vulto da cortina ele e uma mulher. Conversam. Beijam-se.

Talvez eu já esperasse por algo assim quando comecei a segui-lo, mesmo assim sinto uma forte dor, uma nuvem de tristeza cobre meus olhos, abaixo a cabeça, ligo o carro e volto para casa.
Na noite seguinte ele aparece no teatro.

-Vamos sair para jantar?
-Vamos, vamos para a sua casa hoje pode ser? Você mora sozinho?
-Não tem nada lá.
-Passamos num restaurante, levamos vinho e japonês, topa?
-Tudo bem então. Noto certo desconforto que ele não consegue disfarçar.

Paro o carro em frente ao restaurante. Mal saio do carro noto a luz do celular acesa. Ele deve estar ligando para aquela mulher avisando que ela não poderá ir até aquela noite.
No apartamento a meia luz, quase nada.
Até gosto do estilo despojado, o essencial. Uma suíte, sala com um grande sofá vermelho, cozinha pequena e organizada.

-Enquanto você organiza a mesa posso tomar uma ducha quente?
-Sim.

Ele fecha a porta da suíte, o que me causa estranheza.

-O que tem ali que não posso ver?
Jantamos. Dançamos, falamos coisas banais, como gato e rato um buscando no outro alguma pista, algo que explicasse ou acalmasse aquela sensação de frio no estômago, medo.

Ele cai profundamente no sono. O calmante fortíssimo que pus no copo de vinho dele realmente faz efeito rápido.
Assim tenho tempo para buscar algo que ainda não sei o que é. Pressinto que aqui existe algo, ainda não sei o que posso encontrar.

No quarto um grande armário escuro. A parte de cima, nada.
No armário do meio entre um cobertor azul uma caixa preta me chama a atenção, só a vi por que quando foi guardada a ponta da tampa enganchou no cobertor. Abro. Algumas bolsas entre elas a minha bolsa. Joias, celulares, euros, dólares, reais, documentos, óculos.

Deixo tudo como estava.  Olho Javier pela última vez e vou embora.


NANE 

15 de set. de 2011

Adormecidos




















Dormiam
adormecidos
dois corpos
num corpo nu.

Tocaram-se
os dedos,
jorrou marfim.

Quem sabe
se em mim
acordaste tu
e em ti a sobra
do que eu sou?

António Branco

9 de set. de 2011

Ternura quase impossível
























A uma luz perigosa como água
De sonho e assalto
Subindo ao teu corpo real
Recordo-te
E és a mesma
Ternura quase impossível
De suportar
Por isso fecho os olhos
(O amor faz-me recuperar
incessantemente o poder da provocação.
É assim que te faço arder triunfalmente
onde e quando quero.
Basta-me fechar os olhos)

Por isso fecho os olhos

E
convido a noite para a minha cama
Convido-a a tornar-se
Tocante
Familiar
Concreta
Como teu corpo decifrado
E sob a forma desejada

A noite deita-se comigo
E é a tua ausência
Nua nos meus braços...


Alexandre O´Neill