20 de jun. de 2011

Luvas Pretas


Luvas pretas.
Foi o que ela deixou para trás. Esquecida displicentemente sobre a escrivaninha. Terá sido de propósito? Uma lembrancinha de como terminou aquilo que era para ser apenas um jantar, mas acabou na cama. Na minha cama.
A manhã de inverno gelada. Só mais dez minutos. Banho quente, croissant, café com leite, mais leite. Jornais. Rua. Estaciono o carro próximo ao escritório. Não tão perto que não tenha que andar pela rua principal. Lotada de pessoas apressadas, taciturnas. Sinto-me invisível na multidão.
Do outro lado da rua Ela.
Não deixei de notar que de todas as mulheres que passam por mim ela é a única que está de vestido. Meia calça, salto alto e casaco 7/8.
Negros cabelos ondulados não me deixam ver seu rosto. Dançam suavemente moldando seus traços. Lábios carmim. Alva pele. Negros olhos. Andar languido.
Ela não nota minha presença.
-Preciso fazer alguma coisa antes de perdê-la de vista.

Banho quente, café preto. Música para vestir-me. Ritual. . Chanel e batom. Observo meu corpo nu no espelho do quarto. Penso nele. Visto-me para ele. Mesmo que hoje eu não o encontre
A rua lotada, preciso correr, tem um contrato importante para fechar. Dizem que o empresário é casca dura. Ah deixa comigo. Adoro dominar o tipo sanguíneo. O vento frio gela meu rosto e corpo. De repente sinto que está faltando alguma coisa.
Sinto a meia calça roçar minha pele. Esqueci-me de vestir a calcinha, se pudesse andaria sem, sempre.
Estou sendo seguida ou é impressão minha? Do outro lado da rua, mesmo sem virar o rosto, percebo que um homem acompanha meus passos, no mesmo ritmo.
Sinto o olhar dele.
Ando mais rápido. Preciso entrar em algum lugar. Desviar meu caminho até ter certeza de que estou segura. Entro numa farmácia, a balança virada para a rua. Olho discretamente e o vejo.
Parado olhando a vitrine de uma loja de roupas masculinas, no outro lado da rua. Deve estar me observando pela vitrine da loja ou é paranoia?
Saio pela porta lateral e continuo meu caminho. Cada um que aparece!
Não deixei de pensar no estranho homem do outro lado da rua. Alto, cabelos muito curtos, barba muito baixinha. Bem vestido. Intrigante. (quer dizer: interessante)
No prédio de 12 andares.
-Por favor, posso falar com o Sr. Adriano?
-Ele acabou de chegar. Você pode aguardar uns 10 minutos?
-Sim, claro. Obrigada.
A recepcionista, uma mulher de uns 50 anos, elegante e tranquila fala com ele ao telefone.
-Sim, ela está aqui. Não posso fazer isto. Está na agenda, ela sabe que o senhor está aqui.

Ela olha para mim e tenta disfarçar. Mas entendi que ele não quer me atender.
-O Sr. Adriano está numa reunião e vai demorar. Você se importa de voltar no final de tarde?
-Não. Não poderei voltar no final da tarde, Tenho que visitar outro cliente e não posso remarcar.
A porta da sala dele abre e o homem do outro lado da rua aparece.
 
Ela percebeu que a estou observando. Entrou na farmácia e não saiu mais de lá. Olho para uma vitrine. Olho sem ver. Só um pensamento. Ela! Quero ao menos saber o nome.
Depois de meia hora já não consigo disfarçar. Os vendedores me olham de dentro da loja, devem achar que sou maluco. No mínimo narcisista.
-Cara, entra lá. Seja cara de pau mesmo. Pode ser sua última chance de encontra-la.
Na farmácia poucos clientes. Compro uma coisa qualquer. Olho ao redor. Ela não está aqui.
-Fugiu, sumiu. Será que ela percebeu que eu a estava seguindo?
Saí também pela porta lateral.
-Ela sabe. Ela viu que eu a seguia. Sem chance.
Volto á rotina. Marquei com uma consultora, mas não quero falar com ninguém hoje de manhã. Na sala de espera ela me aguarda, tento dispensa-la, mas a moça parece insistente.
Vou deixa-la esperar.
Dulce me liga informando que a moça insiste em falar comigo.
Decidido a expulsá-la dali eu mesmo abro a porta da sala e não acredito no que vejo.
Ela.
Nossos olhares se cruzaram surpresos. Como se já nos conhecêssemos. Como se já fossemos cumplices. Em segundos tomei uma decisão.
Eu a quero.
Na minha sala, na minha cadeira, na minha vida.
Mas ela parece resistir. Não demonstra interesse. Termina de falar dos detalhes e me pede para assinar o contrato. Gestos delicados e elegantes.
Despedimo-nos formalmente. Ela deixa um cartão. Não a deixarei sumir novamente.
 
Na sala dele. Decorada com muito bom gosto. Os livros e DVDs chamam minha atenção. No canto, ao lado de um grande armário de madeira escura uma adega. Estanho. Adega no escritório?
Será que ele faz festinhas aqui.
-Ah! Não é o que você está pensando. Sou apreciador de vinhos e recebo vinhos de clientes e amigos ou que trago nas viagens que faço.
Tinto, carmim? Não sei, apenas senti que corei.
Ele me observa, sinto os olhos dele me desnudando. Será que um homem pode saber quando uma mulher está sem calcinha? Será que imagina as fantasias que temos em qualquer hora do dia? Fantasias impossíveis de se realizarem. Fantasias que só dão prazer por que são fantasias? Ou será que não?
Desço o elevador. Uma sensação estranha toma conta de mim. Ímpeto de voltar e falar mais com ele, saber mais. Entender o que querem aqueles olhos de interrogação.
O telefone toca. Já estou em casa. Ele.
-Sim, posso voltar ainda hoje só preciso de uns quarenta minutos.
Ele quer alterar algo no contrato. Marcamos de nos encontrar no hall do hotel onde está hospedado.
Sem problemas. Consigo fazer isso sem me deixar ser surpreendida.
O hall está vazio. Apenas duas pessoas na recepção do hotel. Olho ao redor. Ele está no bar do hotel. Já é noite. As luzes acesas e uma música suave. Perigo.
-Isso aqui não parece um ambiente para revolver assunto de trabalho.
-Não. Por isso mesmo chamei você aqui. Drinks e mais drinks. Afinidades e olhares.
Quarto 906
Acordo e sinto o corpo dele colado ao meu. Nu. Quente. Relembro tudo o que aconteceu. 
Louca!
Vesti-me sem fazer barulho. Deixei a luva de recordação daquela noite maravilhosa. Gostaria de revê-lo. Ainda dorme.
Senti que se acontecesse um segundo encontro me apaixonaria. Ele tem tudo a ver comigo. Tudo. Além de ser persistente. Sei que se eu não sumir ele vai atrás de mim e eu não saberei dizer não.
Fecho a porta e desço para a branca manhã coberta de bruma.
Ainda na lembrança a sensação do corpo dele junto ao meu, o sabor dele na minha boca e o perfume dele atordoando meu pensamento.

Luvas pretas.
Mais nada, nenhum bilhete.
Ela se foi. 
Ligo para o celular. Fora de área. Liguei mil vezes. Telefone não existe.
Procurei pela cidade. Nunca mais a encontrei.



NANE

18 de jun. de 2011

Mise-en- abîme









Pego no meu copo em frente do fogo e tenho uma certeza absoluta, mas não sei a respeito de quê.
Não me basta a alegria do riso. Não me basta ser feliz por ignorância.
Inventámos a palavra, a música e até inventámos Deus.
E não contentes com isso, ainda inventámos a felicidade.
Mas a felicidade é a perfeição no tempo presente, portanto com limites; ora a perfeição com limites é um absurdo.
Eu amo a utopia, a loucura e o infinito!
Ah se ao menos estivesses aqui…
Que pena que te baste a felicidade e não venhas enlouquecer docemente comigo.
Vem beber deste vinho e olhar a vertigem do fogo.
Quando olhamos o abismo não há quem nos devolva o olhar, ficamos a sós com o infinito.
Vem cair na fundura da memória, vem voar na antecipação do futuro; transpor os limites do tempo é que nos aproxima dos deuses.
Vem sofrer comigo, vem. Há mais contentamento para além da felicidade.
Ser feliz é ficarmos emparedados no presente.

Manuel Guinato

17 de jun. de 2011

Momento



Uma espécie de céu
Um pedaço de mar
Uma mão que doeu
Um dia devagar
Um Domingo perfeito
Uma toalha no chão
Um caminho cansado
Um traço de avião
Uma sombra sozinha
Uma luz inquieta
Um desvio na rua
Uma voz de poeta

Uma garrafa vazia
Um cinzeiro apagado
Um hotel na esquina
Um sono acordado
Um secreto adeus
Um café a fechar
Um aviso na porta
Um bilhete no ar

Uma praça aberta
Uma rua perdida
Uma noite encantada
Para o resto da vida
Pedes-me um momento
Agarras as palavras
Escondes-te no tempo
Porque o tempo tem asas
Levas a cidade

Solta no cabelo
Perdes-te comigo
Porque o mundo é o momento
Uma estrada infinita

Um anuncio discreto
Uma curva fechada
Um poema deserto
Uma cidade distante
Um vestido molhado
Uma chuva divina

Um desejo apertado
Uma noite esquecida
Uma praia qualquer
Um suspiro escondido
Numa pele de mulher
Um encontro em segredo

Uma duna ancorada
Dois corpos despidos
Abraçados no nada
Uma estrela cadente
Um olhar que se afasta
Um choro escondido

Quando um beijo não basta
Um semáforo aberto

Um adeus para sempre
Uma ferida que dói
Não por fora, por dentro...



Pedro Abrunhosa

15 de jun. de 2011

Intemporal






















Nem sempre consigo
falar o que sinto
e deslizar
no teu corpo
lentamente
buscando
o brilho
onde te encanto

Por nós
a noite
faria um canto
intemporal

Uma canção
de amor e tanto

Nane

14 de jun. de 2011

Conto: O Amante Inglês


O avião lotado, ao meu lado um homem de 50 e poucos anos, sério, fechado, quase grudado á janelinha do avião, absorto em seus pensamentos. Um livro no colo, marcando uma página qualquer, abandonado á espera de atenção. No jantar servido no avião ele pede apenas vinho. Tinto.
Agradece e mergulha novamente em profunda melancolia. Ou será por alguém que acabara de deixar em algum hotel da cidade fria e agora distante?
“O sabor ainda na boca”. Talvez queira ficar assim alheio a tudo para aproveitar cada segundo a memória ainda fresca dos momentos bons. Num dos bolsos do casado não posso deixar de notar, displicente pende adorável uma fitinha vermelha de cetim. A calcinha?
O vinho e o jantar a meia luz do interior do avião e a longa demora até a chegada. Sono.Naturalmente tiro os scarpins vermelhos, dobro o tecido preto do meu vestido sobre os joelhos e me acomodo para fechar os olhos e descansar. Durmo.
Sinto mãos firmes tocarem meus pés delicadamente, quase com medo, quase sem tocar. As mãos sem pressa tateiam cada centímetro da pele nua no meio da escuridão e de umas poucas vozes. Não me mexo. Passiva. Quero ver até onde ele vai. O que pretende. Deve pensar que estou dormindo e não vou acordar. Um jogo perigoso. Até onde ele vai? Até onde permitirei? Terei eu limites?
Minutos depois de repente ele para. Segue para os fundos do avião. Eu vou atrás.
-Olá. Para onde você vai?
-Para Londres e você?
-Também. Eu vivo em Londres e você?
-Turista.
Trocamos telefone e nos beijamos. Os últimos assentos livres e vazios. Só nós dois. 
A carne lasciva e macia, alva, arranhada e mordida.
Os lábios carmim sangrando ainda famintos, doloridos.
Os seios fartos de tantos beijos de bocas e mãos ávidas e curiosas.
A única roupa que restou foi uma pequena blusinha que uso por baixo do vestido. Ele inteiramente nu sob a manta vermelha.
Sinto frio, frio que percorre a espinha. Corta. Os olhos lacrimejam. Luz! Dia! Abro os olhos. Estou no mesmo assento. O homem ao meu lado intocável e ausente.
Foi um sonho?!
Falta pouco para chegar ao aeroporto.  Ele me espera. Penso nos nossos planos, o coração aos pulos, louco de ansiedade, o corpo anseia pelos braços dele. Vida nova! Recomeçar!
Ao chegar ao aeroporto dois seguranças me chamam, saio da fila gigante, pedem meu passaporte. Um deles, loiro, alto de olhos azuis impenetráveis, cheira meu passaporte, olha para o outro segurança, moreno, magro e alto. Os dois sorriem e chamam uma tradutora.
Não entendi o que eles falaram. Não entendi o gesto de cheirar meu passaporte, nunca saberei. Não falaram inglês. Uma agente veio falar comigo, fez algumas perguntas e logo fui liberada, segui sem deixar de perceber o olhar atento do agente loiro.
Retirei as malas. Procurei por Edward. Não o vi na sala de desembarque. Esperei algum tempo, procurei com o olhar e nada. A multidão se retirava apressada e logo ficava um imenso vazio. Um homem alto, muito forte, olhos muito azuis me fez sinal. Sorriu feliz por me ver. Fiquei muito surpresa! Mais ainda quando ele se apresentou como Edward.
Fique em choque! Tão surpresa, tão sem chão que resolvi não fazer perguntas. No táxi a caminho do hotel tentava ainda entender quem era aquele homem. Era o Edward. Mas não o “meu” Edward.
Não vi a paisagem por onde passamos, não vi o nome do lugar, não ouvi o que Edward falava com o motorista do táxi.
- Senhor, por gentileza pare o carro.
-Não, é perigoso parar aqui, vamos até o hotel. Por favor, precisamos conversar.
Um mar azul, tão azul como nunca havia visto antes. Calor. 40 graus e casas brancas, todas brancas, lindas. Numa delas o taxista nos deixa meio desconfiado.
-Por favor, ouça-me. Eu amo você. Todo esse tempo eu sofri, queria falar a verdade, mas tive medo de perder você. Sempre enviei fotos minhas com meu irmão ao lado. Você gostou dele, da imagem dele, não tive coragem de falar que eu era o outro. Não imaginei que a nossa história fosse chegar até aqui.
-Você não poderia ter feito isso comigo. Você é um desconhecido para mim. Preciso sair, respirar, pensar.
Ele chora e ajoelha-se. Tira do bolso um anel solitário.
-Case-se comigo, prometo lhe fazer feliz.  Por favor, não me abandone.
Lágrimas dele.
Raiva, desprezo, desilusão, pena, medo.
E o “outro”? Onde ele está? Quem é ele? Como se chama? Senti saudades do outro que possivelmente não me conhece. Tentei raciocinar, entender, mas só queria fugir dali.
Fui até a praia. Tirei os sapatos e caminhei descalça pela areia solta. Não sei por quanto tempo caminhei sozinha sem rumo. Procuro cigarros na bolsa. Encontro o cartão do homem do avião. Garry.
O telefone chama, chama. Ninguém atende.
O telefone toca toca....ninguém atende, deixei recado.
O telefone toca, toca.
-Alô?
-Garry, você está sozinho agora?
-Sim. Onde você está?
-Perto. Posso ficar com você, só essa noite? Amanhã volto para casa.
Não fez perguntas. Abraçou-me apertado. Afeto.
Chorei nos braços dele que me desnudou calmamente entre lágrimas e beijos.
Amou-me, tocou-me, como se já me conhecesse há muito.
Como os homens conseguem fingir tão bem?
Tiveram aulas com Dom Juan “Faça cada mulher sentir-se única, amada, exclusiva”.
Acordei e todo pesadelo do dia anterior agora parecia não importar mais. Queria esquecer.
 Erro: Fingir, fugir dos problemas que atingem a alma profundamente.
Garry saiu. O notebook em cima da mesa da sala. Preciso antecipar a volta para casa. Faço login como visitante. No pano de fundo uma foto minha. Intrigada e surpresa abro a pasta de documentos. Já esperava. Todas as fotos que enviei para o Edward.
-Quem é esse homem? O que ele faz com minhas fotos aqui?  Eu nunca o vi antes do encontro no avião.
Numa das fotos Edward e Garry juntos. Sem saber com quem fiz planos, sem saber com quem falei todo esse tempo, sem saber direito o que aconteceu.
-Me perdoe. Eu sou irmão do Edward. O homem da foto é um amigo. Nada sabe sobre nossa história. Edward a ama. Eu também. Ele não sabe que estou aqui. Ele não sabe que muitas vezes falei com você usando o nome dele.
Não sabe que a amo desde que a vi. Sei que você vai me odiar e me deixar, mas, por favor, não nos abandone. Não fuja.  Abraçou-me por um longo tempo. Senti-me tão bem nos braços dele.
Uma paz que nunca senti antes. Senti seu coração bater apressado. Senti que queria ficar assim. Que não queria fugir mais de tudo e de todos. Fugir e não tentar.
O amor revela-se e quando tentamos negá-lo torna-se mais forte ainda.
A paixão nos faz ver o tamanho da nossa solidão!


Nane



































(...)Pelas tuas mãos medi o mundo
E na balança pura dos teus ombros
Pesei o ouro do Sol e a palidez da Lua(...)


(Sophia de Mello B)

12 de jun. de 2011

Dá-me tua nudez



Dá-me tua nudez,
Tua nudez úmida
Outorgada em pêlos e dobras,
Nas dobras desfeitas
De dez e mil lençóis.

Dá-me tua nudez,
Tua nudez traçada,
Declarada
em gotas e curvas,
Nas vidas desfeitas
Por uma ou tantas canções.

Dá-me tua nudez,
Tua nudez rasgada,
Marcada em veias e carnes,
Nos pactos esquecidos
De todas e outras juras.

Dá-me tua nudez,
Tua nudez faminta,
Destrancada de almas e corpos,
Nos sonhos destruídos
De meus e teus desejos.

Paulo Mont'Alverne

11 de jun. de 2011

Labirintos
















Meus
pés descalços
abrem caminhos
sem trilhas,
sem mapas.
Deixo-me cair
nos precipícios
do teu corpo
Em cada
queda
um vôo,
em cada
beijo,
veneno
a percorrer
meu sangue
e corpo

Deixo-me perder
em ti...


10 de jun. de 2011

Lui



Per persuadermi
al tuo amore
vieni da me
a sciogliere
questo nodo
d'angoscia.

Tu solo puoi.
Tu fitto
d'ali di laridi.

Guarda
siamo alti sul ramo
al sole del mattino.

E lasciamo perle
sul cammino,
dolci gocce
dell'ingano"

Annalisa Cima

9 de jun. de 2011

Quero




Quero
Nos teus quartos forrados de luar
Onde nenhum dos meus gestos faz barulho
Voltar.

E sentar-me um instante
Na beira da janela contra os astros
E olhando para dentro
comtemplar-te,
Tu dormindo antes de jamais
teres acordado,
Tu como um rio adormecido
e doce
Seguindo a voz do vento
e a voz do mar
Subindo as escadas
que sobem pelo ar.



Sophia de Mello Breyner Andressen

"A blue sea painted red the flight of seagulls"



Voando só
por mares e sonhos
procuro o sentido de todas as coisas
na brisa
na maresia
no gosto do mar na pele
e no calor do sol
despindo todos os sentidos...

7 de jun. de 2011

O Veneno da Serpente










 
A serpente negra rasga ao meio a planície verde em sinuosas curvas e retas infinitas aguçando a curiosidade de saber o que virá pela frente.

Casinhas simples quase invisíveis longe da rodovia, imagino como seria viver assim, longe do mundo, longe da vida que segue louca de passos apressados, de relógios atrozes e informações do que acontece no mundo. Um povoado logo aparece, essa mistura me fascina.

O sol suave do amanhecer, o carro deslizando pelo asfalto e a presença misteriosa dele.
Pouco fala.
Sorri meio nervoso ás vezes e parece distante como eu.

-Viajarei sozinho de qualquer forma. Você não conhece o país, será uma viagem agradável e logo estaremos de volta. Eu sei o que você está pensando, mas não se preocupe. Respeitarei você, só farei aquilo que você também quiser fazer.

-Frase fatal!

No hotel ele já havia reservado um quarto. Para casal.
Eu nada disse, fiz de conta que não notei a intenção dele. No quarto tomei um longo banho quente. Vesti algo confortável e sexy e naturalmente transamos como se fossemos amantes, namorados ou ficantes.

Cruzamos a fronteira e a diferença incrível que encontrei depois de atravessar “a ponte” me deixou perplexa. Um misto de espanto e medo. Muita terra vermelha, uma aparente sujeira e desorganização, pessoas estranhas, com olhares desconfiados e suspeitos.
Por um momento senti que não deveria estar ali. Fiquei sozinha num restaurante enquanto ele foi comprar algo numa loja ao lado.

Um homem com a pele queimada de sol, meio índio, meio chinês veio falar comigo.

-Hablas espanhol?
-Não
-Su amigo me pidió que lo lleve a él.

-Mas, onde ele está? Quem é você?
-Yo soy su amigo. Él tiene un problema y me pidió que cuidar y usted. Ven conmigo por favor.

Eu fui com ele, insegura e desconfiada. Um país estranho, um homem estranho.
Entramos no carro dele quando percebi que atravessamos novamente “a ponte”. Logo depois ele parou o carro num local movimentado. Sem dizer nada parou o carro, me mandou descer.

-Gracias a Dios para ser salvos. ¡Aléjate de aquí. No hablar con nadie. Su amigo no va a volver.

Olhei para os lados desesperada. Já estava fora daquele país estranho, mas muito longe de casa, sem dinheiro, sem minha mala, sem nada e com medo.
Muito medo!

Passei  horas parada, sentada num banco na beira da estrada.
Não sentía fome…pensava apenas em como voltar para casa.

Desamparo!

Não sei quanto tempo se passou, imagino que muito.
Um carro preto parou ao meu lado, dois homens se aproximaram, sem falar nada me seguraram um de cada lado e me levaram para dentro do carro que saiu em alta velocidade.

Pânico!
Não se falavam. Não reagi. Não sabia como agir.

Esperava pelo pior sem tentar me salvar não sei de quem.

O carro para em frente a um prédio cinza, austero e frio.
Poucos carros estacionados, pouca luz.

Numa sala pequena, escura e fría aguardo que algo aconteça. Vejo por uma fresta da porta que revistam uma mala, reconheço minhas roupas.
-Como podem estar com a minha mala? Quem são eles? Onde está Pedro?

Horas lentas e torturantes, frio, fome, sono…e mais medo.
-Su amigo es arrestado. Tráfico internacional de drogas. Tú vienes conmigo. Pidió que cuidar de ti
-Tráfico de drogas? Mas onde ele está? Quero falar com ele. Preciso da minha mala, preciso de dinheiro para voltar para casa.
-No puedo hablar ahora, todavía con el sheriff. Ven conmigo.

Os dois homens seguiram sem se falar,  se olhavam e sorriam cumplices.
Um sorriso asustador. 

O lugar era distante da cidade, uma pequena chácara no meio do nada.

 -Um lugar para descansar antes de voltar para casa, finalmente.

 A casa simples, vários quartos e um bar repleto de bebidas de todos os tipos.
Acenderam a lareira, me refugiei ali junto ao fogo.

Os dois homens logo saíram e me deixaram sozinha. Ouvi o carro se afastando e finalmente tive a sensação de que poderia descansar, estava exausta.
Me despi. A água quente da banheira massageando meu corpo e a dor indo embora, não pensei em nada..apenas relaxar um pouco, esquecer um pouco.

Levantei assustada e ainda nua. Um barulho na porta me fez despertar.

-Quatro homens entraram no quarto, bêbados, usando fardas, armados e com um olhar faminto, terrível, sorriam e se aproximavam mais e mais. Não entendia o que falavam, mas o pavor tomou conta de mim quando entendi o óbvio.
Não tentei fugir.



Abri os olhos e a primeira coisa que vi foram dois olhos cinzas e tristes.
As mãos que cuidavam dos ferimentos do meu rosto eram  enrugadas e escuras, mas suaves.

Uma dor lancinante tomou conta de mim, todo meu corpo era sangue e dor, manchas rochas e marcas de mordidas e arranhões.
-No se mueva, él tomará cuidado de usted niña.
-Quem é você? Quem fez isso comigo? Não entendo. Me ajuda, preciso voltar para casa.
-Tienes que salir de aquí. Si seguimos así van a "matar "a usted. Su amigo le dio a estos hombres a cambio de su libertad. Por favor, niña. Me ocupo de esta casa, no eres el primera en sufrir así. ¡Aléjate de aquí. Escape!

Desespero. Dor.

A manhã ainda está longe de chegar,  muito frio e ruas desertas. Apenas um vulto com uma capa de capuz negro anda sem rumo pelas ruas iluminadas por luzes cambaliantes e fantasmagóricas.
A bruma cobre tudo com seu manto gélido e silencioso.

 “A ponte”.

 Avisto a ponte muito próxima.
Não sei de qual lado da ponte estou.

No me país ou no país estranho. A ponte desliza como a serpente negra do asfalto, longa e infinita na  noite escura.
Com passos firmes caminho em sua direção.

Decidida a viver na ponte.
Debaixo da ponte
Sob a ponte
Sob a água...






Continua......................................

5 de jun. de 2011




"Trago
no olhar
visões extraordinárias,
de coisas que abracei
de olhos fechados..."

Florbela Espanca